A Responsabilidade dos Agentes Públicos nas Ordens e Procedimentos Ilegais: Uma Reflexão à Luz da Lei 8.112/1990

O Brasil enfrenta um período de grandes desafios institucionais, no qual a atuação dos agentes públicos tem sido frequentemente questionada. Em tempos de decisões polêmicas por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), ordens que tangenciam a Constituição e a inércia do Congresso Nacional, é essencial analisar as responsabilidades legais dos servidores públicos que participam de ordens e procedimentos que violam a legalidade. Neste artigo, exploraremos as disposições da Lei 8.112/1990, que rege o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, e como essa legislação enquadra a responsabilidade em todos os níveis de um agente público envolvido em atos ilegais.

O Princípio da Legalidade e a Obediência às Ordens Superiores

Um dos pilares do Direito Administrativo brasileiro é o princípio da legalidade. Este princípio estabelece que o agente público deve atuar exclusivamente dentro dos limites da lei, respeitando as normas estabelecidas pela Constituição e pela legislação infraconstitucional. O artigo 116 da Lei 8.112/1990 determina que o servidor público deve observar a lei, a Constituição e os regulamentos, sendo proibido agir fora desses limites, sob pena de responsabilização.

No entanto, a relação entre o cumprimento das ordens superiores e o dever de legalidade nem sempre é clara. A Lei 8.112/1990, em seu artigo 116, inciso IV, reforça que o servidor público deve “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”. Ou seja, o servidor não pode se eximir de responsabilidade alegando obediência a ordens que, de forma evidente, são contrárias à lei.

Isso levanta uma questão central: até que ponto os agentes públicos podem ou devem obedecer a ordens que aparentam ser legítimas, mas que, na prática, tangenciam ou até violam a Constituição? Este dilema tem se tornado cada vez mais presente, especialmente diante de decisões judiciais e ordens administrativas que podem ser interpretadas como abusos de poder ou desvios de função.

A Responsabilidade Civil, Penal e Administrativa dos Agentes Públicos

A Lei 8.112/1990 prevê, em seus artigos 121 a 126, que o servidor público pode ser responsabilizado civil, penal e administrativamente por atos praticados no exercício de suas funções. Essas responsabilidades são independentes entre si, o que significa que um servidor pode responder simultaneamente em diferentes esferas. Isso ocorre especialmente quando um ato que resulta em prejuízo ao erário ou a terceiros é considerado, ao mesmo tempo, uma infração administrativa, um crime ou uma conduta geradora de dano civil.

A responsabilidade civil do agente público ocorre quando, por ação ou omissão, ele causa prejuízo ao patrimônio público ou a terceiros. Já a responsabilidade penal abrange crimes comuns, como corrupção, prevaricação, e crimes previstos na Lei de Improbidade Administrativa. A responsabilidade administrativa, por sua vez, está diretamente relacionada ao descumprimento de deveres funcionais estabelecidos na Lei 8.112/1990 e pode resultar em advertências, suspensões ou até exoneração.

Ordens Manifestamente Ilegais: O Dever de Resistência

A legislação deixa claro que os servidores públicos têm o dever de resistir a ordens manifestamente ilegais. No entanto, o que caracteriza uma ordem manifestamente ilegal? Esse é um ponto de interpretação que gera debate. Uma ordem é manifestamente ilegal quando o seu caráter ilícito é tão evidente que não deixa dúvidas quanto à sua contrariedade à lei ou à Constituição. Por exemplo, uma ordem que violasse diretamente direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, como o direito à liberdade de expressão ou o direito ao devido processo legal, poderia ser considerada manifestamente ilegal.

Quando o servidor público recebe uma ordem que julga ilegal, ele tem o dever de recusar seu cumprimento e, de acordo com o artigo 116, inciso IV, da Lei 8.112, deve informar a autoridade superior sobre a ilegalidade da ordem. Caso o servidor cumpra uma ordem ilegal sem questionamento, ele pode ser responsabilizado pelas consequências desse ato, ainda que tenha agido sob comando de uma autoridade superior.

A Inércia dos Órgãos de Controle e a Responsabilidade Compartilhada

Um dos maiores problemas que o Brasil enfrenta no contexto atual é a inércia de algumas instituições responsáveis por fiscalizar a legalidade dos atos públicos, especialmente no Congresso Nacional. A Lei 8.112/1990 estabelece que os atos administrativos, incluindo aqueles que envolvem ordens e procedimentos, devem ser submetidos ao controle interno e externo, com o objetivo de prevenir abusos de poder.

No entanto, quando as instituições de controle, como o Congresso Nacional ou o Ministério Público, falham em exercer seu papel de fiscalização, os agentes públicos podem ser levados a crer que suas ações, mesmo em desacordo com a legalidade, não serão investigadas ou punidas. Esse fenômeno gera uma cultura de impunidade e de obediência cega, que pode resultar na prática de atos ilegais sob o pretexto de “cumprir ordens”.

A responsabilidade por esses atos, no entanto, não recai apenas sobre o agente que executa a ordem, mas também sobre os órgãos que se omitem na fiscalização e controle da legalidade. A inércia dos órgãos de controle não exime o agente público de sua responsabilidade, mas agrava a crise institucional e contribui para a deterioração do Estado de Direito.

Os Limites da Obediência e a Proteção ao Interesse Público

No contexto de uma crise institucional, a obediência às ordens superiores deve ser sempre pautada pela proteção ao interesse público e pelo respeito à Constituição. A Lei 8.112/1990 deixa claro que o servidor público não pode ser conivente com ordens que violem a legalidade ou que comprometam o patrimônio público ou os direitos dos cidadãos.

A responsabilidade dos agentes públicos não se limita ao cumprimento das ordens que recebem, mas também inclui o dever de questionar, resistir e denunciar atos ilegais. Isso implica que, mesmo diante de uma cadeia hierárquica, o servidor tem a obrigação de avaliar a legalidade das ordens que cumpre, sendo corresponsável pelas consequências de atos que possam comprometer a legalidade e a moralidade administrativa.

Conclusão: O Papel do Agente Público na Defesa do Estado de Direito

A responsabilidade dos agentes públicos em tempos de crise institucional vai além da simples obediência às ordens superiores. À luz da Lei 8.112/1990, é evidente que os servidores públicos têm o dever de garantir que suas ações sejam pautadas pela legalidade e pela proteção dos direitos constitucionais. O princípio da legalidade não é uma escolha, mas uma obrigação que recai sobre todos os níveis do serviço público.

Em um momento em que decisões judiciais, ordens administrativas e a inércia de instituições de controle parecem distorcer a aplicação da lei, é fundamental que os agentes públicos lembrem-se de seu papel na preservação do Estado de Direito. Cumprir ordens ilegais não é apenas um ato de irresponsabilidade, mas uma ameaça à própria democracia. Somente com a obediência às leis e o respeito aos direitos fundamentais é que podemos garantir um futuro de justiça e igualdade para todos.

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